Anatomia da liberdade de expressão em 2018

A violência que há por trás da objetificação de nossa condição de cidadão, redundando na perda de nossas liberdades, assevera que a luta por elas, a meu ver, nunca se fez tão necessária, nunca esteve tão ameaçada.

Quem lança um olhar atento aos séculos passados, sobretudo ao XVIII, e nota a forma como eram tratadas as liberdades, decerto se questiona onde fomos parar, ou o que deu errado conosco, em face do martelo que achata e transforma cada um de nós em objetos, e não em sujeitos do Direito e de nossas liberdades por ele reguladas, conduzindo cada um de nós a gozar de uma versão opaca de nossa própria cidadania.Me recordo que, há alguns bons anos, Gilberto Dimenstein escreveu um livro chamado – O cidadão de papel– no qual apontava que nossos direitos (e deveres) documentados não eram exercidos. Pois bem, creio que possamos também nos classificar como cidadãos sem papel, sem função, ou com a abjeta função de objeto, de engrenagem, o que, obviamente, significa que cidadãos não somos. E se não somos cidadãos, somos o que? A angústia dessa pergunta sem resposta, ou com resposta inconveniente, nos leva a muitas inseguranças, nos atrai à reflexão de que tudo está em crise, nos carrega a mudanças ininterruptas, o que é paradoxal, pois não há mudança, quando desconhecemos onde estamos.

A propósito, recentemente, a grande imprensa noticiou que determinado instituto apurou que a palavra –mudança- foi escolhida como a mais importante do ano de 2018 para os brasileiros. Desnecessário dizer que dentre as demais palavras finalistas também estavam –medo e –caos. Sintomático do que exponho, não? Também é sintomático que tenhamos cada vez mais nos fascinado por políticos com discurso de ordem, e que estejamos buscando cada dia mais desesperadamente paz espiritual nas mais superficiais frases de para-choque de caminhão da chamada auto ajuda.Esses fenômenos, típicos da sociedade moderna de massa em que estamos, chegam a seu limite nas diretrizes de imersão informativa e comunicativa na qual vivemos, proporcionando um cidadão nulo, um não-cidadão, e acarretando como severa consequência a insensibilidade social para o valor da autonomia, para o valor das liberdades.Não me surpreenderá se parte dos leitores (há algum aí?) que chegou até esse momento do texto já esteja inquieto, dizendo: mas que exagero, também não é assim, quanto pessimismo. Esses que assim pensam são os piores, pois a sua insensibilidade passou ao estado de conversão acomodada. Por desconhecerem o que significam as suas próprias liberdades, e o exercício democrático e jurídico delas, passam a defender que não há problema na sentida ausência de alguma liberdade: rachadura sutil, mas eficiente para a infiltração que, abaixo, apontarei.

É simples: se todos somos objetos, e não sujeitos do Direito, natural que estejamos todos expostos, razão pela qual o Estado, e alguns setores da sociedade civil organizada, por ele financiados, encontram-se na obrigação de intervir, e supostamente nos proteger.

Augusto dos Anjos, escreveu “a mão que afaga é a mesma que apedreja”2. A mesma mão do Estado que afaga, como, por exemplo, a aclamada hipossuficiência jurídica do consumidor ou do trabalhador, notadamente, conquistas importantes, é a mão que a cada dia e ano mais avança sobre nossas liberdades, sob o pretexto de que somos hipossuficientes para muito mais coisas do que possamos imaginar, é a mão que dirá como você deve cuidar de seus filhos, a qual propaganda você pode assistir na televisão, em qual horário, se e quando poderá levar seu rebento para assistir a um filme no cinema, ou a uma exposição, ou ao teatro. É o Estado, e alguns setores da sociedade a ele entrelaçados, tomando as suas liberdades porque você é objeto, e não sujeito, incapaz, portanto, de guiar na vida a si e aos seus.

E, mesmo que isso possa não parecer perder muito, reflitamos: se o Estado é quem nos protege, quem, afinal, nos protegerá do Estado? A consequência do esvaziamento de nossa condição de cidadão não poderá ser outra, senão o aceno para um cenário cada dia mais autoritário.

A violência que há por trás da objetificação de nossa condição de cidadão, redundando na perda de nossas liberdades, assevera que a luta por elas, a meu ver, nunca se fez tão necessária, nunca esteve tão ameaçada.

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1 DIMENSTEIN, Gilberto. O cidadão de papel. 5 ed. Ática. 1994.

2 O grande poeta constou o verso transcrito no impactante e belo – Versos íntimos – presente em seu livro- EU- lançado originalmente em 1912, no Rio de Janeiro.

Artigo publicado originalmente no Migalhas.

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