A censura cotidiana, a midiatização da autoridade e a Bienal do Rio

Um momento em que não podemos deixar de dizer aquilo que pensamos é quando nos mandam calar a boca. O absurdo escancarado de entender como atentatório um beijo estampado no enredo de uma obra ficcional comercializada na última bienal do Rio uniu a todos em torno da necessidade de enfrentamento à censura. O caso ganhou as redes sociais, os debates acadêmicos, e foi levado às manchetes de jornais do Brasil e do mundo.

Mas, terá sido o ato impensado? Tendo em vista que as autoridades costumam obedecer a impulsos mais estratégicos que ideológicos, cabe reconhecermos que a midiatização do ato da censura sempre carrega a tiracolo a midiatização da própria autoridade, investida no papel de censor, que, embora sob as vaias da opinião pública, cumpre uma agenda própria, e capitaliza, de alguma forma, a exposição de si e de seu ato para os seus.

Ao firmarmos, pois, posição pelas liberdades, damos mídia à censura, que, repaginada, é ofertada pela autoridade censora ao seu público como um ato de enfrentamento e de defesa de determinados valores ou instituições.

Estamos, assim, diante de um incômodo paradoxo: ao tornarmos pública nossa indignação, alimentamos a quem nos ataca. E mesmo assim não podemos evitar de nos indignar, tampouco cessar a midiatização do ocorrido.

Estamos também diante de uma triste constatação: a censura vale a pena à autoridade que dela faz uso, a midiatização de seu ato não a constrange como em um passado recente, o que significa também dizer que a opinião pública perdeu muito de sua força, e não mais goza de consenso em relação a temas tão importantes como os em questão.

A perda de força da opinião pública possui raízes históricas e educacionais complexas, que não cabe a este breve artigo explicar, bastando apontar que a ausência de consenso público a respeito do notório avanço sobre nossas liberdades é algo facilmente observável, cada vez mais cotidiano, e muito característico da realidade sócio-cultural brasileira dos últimos anos, tendo por efeito a perceptível banalização de direitos individuais, a relativização de atos censórios, e a mitigação do direito à livre expressão.

A mensagem que esse episódio deverá deixar em todos nós não é meramente a de que devemos estar alertas sempre que as nossas liberdades estiverem sob o ataque de atos autoritários do Estado. Embora lamentável, esse não é o enredo todo.

A mensagem a se deixar é a de que o Estado e seus atos autoritários estarão alertas sempre que cada um de nós relativizar a importância de nossas liberdades.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

Compartilhe