#SomosTodosDesembargador

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Nesse exato momento está acontecendo, em algum canto do Brasil, um ato no mínimo semelhante ao proporcionado pelo desembargador. Acontece que não o vemos.

O único espanto legítimo causado pelo episódio do desembargador Eduardo Siqueira foi o espanto ilegítimo causado pelo episódio do desembargador Eduardo Siqueira.

O experiente colunista Josias de Souza chegou a escrever no UOL que a futura punição dada ou não ao desembargador pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responsável pela investigação do caso, e que sequer possui instrumentos que possamos chamar minimamente de severos para punição de seu corpo de magistrados, mostraria o país que somos.

Caro Josias, ainda não sabe o país que somos? Somos isso, meu caro. E somos todos, e desde sempre. Nos nossos empregos, nas redações, nos escritórios, na rua, na praia ou em uma casinha de sapê. Desancamos o próximo, se o próximo for socialmente distante, que desancará o próximo, e assim por diante, girando a roda da fortuna de nosso país.

Nesse exato momento está acontecendo, em algum canto do Brasil, um ato no mínimo semelhante ao proporcionado pelo desembargador. Acontece que não o vemos.

E não o vemos por duas razões: porque não queremos ver, nos incomoda saber que somos assim, e porque quanto maior a distância entre o cargo da autoridade e o alvo de seu esculacho, maior a virulência.

Deste modo, a maior parte de nós, classe média na qual me incluo, e na qual acredito esteja incluída parte razoável dos leitores, tem contato bastante suavizado com esse tipo de autoritarismo.

Não é difícil imaginarmos que será branda a repreensão destinada ao desembargador pela autoridade robusta de seus colegas. Para termos uma ideia, o ministro Marco Aurélio veio a público nos últimos dias e inaugurou a série de pitos, insinuando que o desembargador de cabelos brancos possuía o juízo de um rapaz.

Imaginemos agora o que não aconteceria com esse guarda municipal, caso o episódio não fosse filmado, e caso fossem a cabo as reivindicações de todas as ligações inflamadas que o magistrado fez, e ainda decerto faria, às autoridades conhecidas suas.

Imaginemos mais, e, para isso, mudemos de cenário: uma batida na favela, com policiais orientando os cidadãos – não os engenheiros civis, mas os cidadãos – a colocarem suas máscaras.

Suponhamos que um deles, acreditando, de fato, ser cidadão, ou mais que isso, rasgasse a multa e a jogasse no chão, não sem antes ameaçar o policial de que o faria. Será que o policial se reportaria aos seus superiores e à imprensa se dizendo humilhado? Será que o cidadão estaria circulando livremente?

Enquanto não acolhermos o nosso pior, enquanto ficarmos esperando que punições mágicas nos apresentem soluções assépticas para aberrações como as que vimos, seguiremos gastando mais e mais séculos com oferendas ao nosso lado sombrio.

Se há algo a fazer com o episódio em questão é não esperarmos nada de ninguém. Olharmos bem para o rosto do desembargador e nos percebermos nele, avaliando se é nosso desejo que sigamos sendo assim, e, sobretudo, se estamos, de fato, dispostos a abrir mão do famoso “você sabe quem eu sou?”, quando estivermos em meio a alguma enrascada.

Qualquer saída que esperar algo do outro, das instituições, e não de nós mesmos, além de não solucionar a questão, ainda nos apresentará uma nova, que é também muito típica de nossa conduta cultural: a hipocrisia.

Artigo publicado no Migalhas.

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