Assistimos a uma cotidiana saraivada de brutalidades, sem nenhuma técnica, contra a liberdade de expressão, por parte de Tribunais, Ministério Público e demais órgãos estatais
Tenho um amigo jornalista que sempre diz que nosso lugar de fala é a boca. Concordo, mas, se discordasse, diria que o meu lugar de fala é a técnica jurídica. Sou advogado e professor e há muitos anos escrevo, ensino e atuo em casos envolvendo liberdades públicas, em especial, a de expressão.
A coisa anda tão feia no Brasil que há alguns anos as pessoas me apresentavam em congressos e palestras dizendo: “Está aqui um advogado especialista em casos relacionados à liberdade de expressão”. Hoje em dia, me apresentam como um advogado especialista em casos relacionados à censura. Viramos tudo do avesso. Tomamos por regra a censura e a liberdade por exceção.
Outro dia, em um grupo chatíssimo de WhatsApp de pais da escola de minha filhastra, uma mãe prometia: “Ai, gente, a liberdade de expressão coloca a nossa democracia tão em risco, que tudo que desejo na vida é poder fazer meu filho entender o limite dela”. Pois é, a mediocridade de alguém se conhece por suas (parcas) ambições.
As pessoas desistiram de entender a liberdade e passaram a desejar apenas o diálogo com suas restrições. Temos assistido a uma cotidiana saraivada de brutalidades, sem nenhuma técnica, contra a liberdade de expressão, por parte de Tribunais Superiores, Ministério Público e demais órgãos estatais e de governo que de fiscais e aplicadores da lei passaram a fiscais e moderadores do debate público.
Que faço em relação a isto? Valho-me de meu lugar de fala, fomentando o debate público com todas as razões técnicas possíveis para respaldar críticas a decisões judiciais e pedidos arbitrários engendrados por agentes públicos em desfavor do exercício minimamente livre das liberdades de expressão e de imprensa. No entanto, noto que as pessoas buscam me dissuadir deste intento: “Ah, para com isso, não há mais lei nesse país. Análise técnica é perda de tempo. Não somos mais uma democracia”.
Ora, ora, mas este seria o mesmo raciocínio da mãe do grupo de WhatsApp. Se acreditar que não vivenciamos uma democracia justifica agentes públicos passarem por cima da lei e cometer arbitrariedades para, na visão deles, restabelecer a ordem, não pode ter a mesma crença quem os critica.
Recordo-me de um ditado popular que dizia “minha educação depende da sua”. Não, a minha educação depende da minha, dos meus princípios, da minha ética. Tratar das arbitrariedades jurídicas que o Estado tem empreendido depende, portanto, da forma como eu enxergo o mundo, e não da forma como o mundo me é imposto pelos outros.
Quem percebe que o Direito se contaminou pela política mais importância ainda deverá dar à técnica jurídica, ou então se tornará igual àquilo que critica. Ser técnico, mesmo quando rara a técnica, é um ato de resistência. Para mim, além de tudo, é uma questão de princípios, um compromisso ético com o mundo que desejo e que não pode se dobrar a eventuais circunstâncias desfavoráveis. Como bem escreve Byung-Chul Han em seu Sociedade do Cansaço, a ética e os princípios existem na constância, jamais nas circunstâncias.
Certa vez, Saramago foi interpelado por um jornalista no programa Roda Viva da TV Cultura sobre ser comunista mesmo depois do fracasso do comunismo no mundo. O escritor respondeu que ser comunista era para ele uma questão de princípio, e nada mais disse. A mim, defender a liberdade de expressão, mesmo que fracassada, ainda que pisoteada, com todo apego constitucional que me for possível e de forma técnica, é uma questão de princípio. O meu lugar de fala do qual não abro mão, transmitido por meu pai, grande advogado e jurista, Lourival J. Santos. E nada mais digo.
André Marsiglia é advogado constitucionalista e professor. Pesquisa casos de censura no Brasil e no mundo.