Proibição de VPN, cogitada por Moraes, igualaria Brasil a países que estão sob ditaduras

A decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de censurar uma mensagem do Telegram disparada a seus usuários brasileiros com ressalvas ao projeto de lei de regulação das redes sociais chamado “PL das Fake News” atraiu críticas diversas da comunidade jurídica. Em primeiro lugar, por silenciar um discurso legítimo, e depois por sequer apontar quais dispositivos legais teriam sido violados pela empresa.

Por iniciativa própria, isto é, sem ser provocado pelo Ministério Público, Moraes ordenou que o aplicativo removesse o comunicado e disparasse outra mensagem, escrita pelo próprio ministro, dizendo que a anterior continha “ilícita desinformação”. O ministro é abertamente favorável à regulação das redes sociais, tema do projeto de lei em questão, e ele próprio entregou ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), uma série de propostas a serem incorporadas ao texto.

No entanto, outra determinação de Moraes, presente na mesma decisão, chamou a atenção de juristas: o ministro ameaçou proibir o uso do chamado VPN (Virtual Private Network, ou rede privada virtual), mecanismo usado para aumentar a segurança no ambiente digital que também é utilizado em países sob regimes autoritários para driblar a censura estatal.

Uma das consequências, caso a empresa não acatasse a ordem do ministro, seria o bloqueio do Telegram em todo o país. Segundo a decisão de Moraes, uma multa de R$ 100 mil por hora seria aplicada a qualquer usuário que recorresse a um serviço de VPN para tentar burlar a restrição ao uso do aplicativo.

A questão é que não há nenhuma lei no Brasil que proíba o uso de VPN para acesso à internet. “Não é proibido, tanto que o ministro não fundamentou na decisão qual seria a lei violada. Acredito que ele fez uma interpretação de forma a inserir a questão do VPN em uma forma de anonimato que a Constituição proibiria. Mas essa interpretação extensiva é muito perigosa, em especial porque ele não mencionou como chegou à conclusão de que seria algo ilícito”, explica Ana Paula Canto de Lima, advogada especialista em Direito Digital e presidente da Comissão de Proteção de Dados da OAB-PE.

“Levar esse debate para o lado do autoritarismo é um caminho perigoso. Na China, o VPN é ilegal. A pessoa que for descoberta usando esse serviço vai ter problemas, porque é um governo ditatorial. Então preocupa o caminho que decisões como essa podem levar”, prossegue.

Ordem de Moraes é arbitrária e gera insegurança jurídica, dizem especialistas

Se o Telegram não tivesse apagado seu comunicado e veiculado a mensagem redigida por Moraes, levando ao bloqueio do aplicativo no país, a medida interferiria na vida de milhões de usuários e empresas brasileiras. Segundo a pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box divulgada no ano passado, 65% dos smartphones no Brasil contam com o Telegram instalado para uso pessoal e profissional.

Outro ponto visto como preocupante por juristas é a desproporcionalidade do valor de multa. Seriam R$ 100 mil por hora tanto para pessoas físicas quanto jurídicas que recorressem ao VPN, com o valor sendo o mesmo independentemente do porte da empresa. Na prática, negócios de pequeno porte que costumam usar a ferramenta para se comunicar com clientes e recorressem ao VPN para manter suas atividades seriam penalizados com multas bastante pesadas pelo uso de uma ferramenta que não é proibida no país.

“Preocupar-se com uma decisão como essa está acima de qualquer questão política. O que está em jogo é a liberdade de expressão, a democracia, o Estado Democrático de Direito e, principalmente, a segurança jurídica. Qual segurança jurídica as empresas têm para continuar atuando no Brasil se a qualquer momento pode vir uma decisão arbitrária e infundamentada, e a empresa é obrigada a aceitar?”, diz Ana Paula Canto.

Já André Marsiglia, advogado constitucionalista especializado em liberdades de expressão e de imprensa e membro da Comissão de Liberdade de Imprensa da OAB-SP, destaca que a ordem de Moraes é inviável na prática, e tem conotação política com o objetivo de incutir medo na população.

“Esse tipo de aferição, do uso de VPN, é inviável do ponto de vista da operação tecnológica, da possibilidade de se investigar para se chegar a algo. Então a ideia aqui é basicamente dar um recado, um aviso, assustar. E a função do Judiciário não é essa”, diz Marsiglia.

O jurista pontua, ainda, o caráter abusivo da medida ao ameaçar punição a pessoas que sequer fazem parte do processo. “O fato de o ministro buscar punir alguém que não consta no processo e por uma atitude hipotética com uma multa absurda vai para além da censura. É uma ordem que pensa na punição antes de se investigar a pessoa que cometeu o eventual delito – uma total inversão de valores”, declara.

Em países dominados por ditaduras, uso de VPN é rechaçado por lideranças autoritárias

O uso das redes privadas está relacionado ao aumento da segurança digital, já que os serviços de VPN criptografam o tráfego de internet impedindo que hackers e criminosos cibernéticos decifrem esses dados para cometer crimes. Em paralelo, a ferramenta usa conexões com servidores de outros países, fazendo com que a localização do usuário não seja identificada. Sendo assim, torna-se possível, por exemplo, driblar restrições de acesso impostas por governos a determinados sites ou conteúdos.

Esse foi o meio usado por brasileiros para seguir acompanhando uma série de perfis nas redes sociais que foram censurados por ordem de Alexandre de Moraes nos últimos anos. Até mesmo parlamentares com mandato ativo tiveram seus perfis silenciados por um período de tempo, enquanto outros, como o do empresário Luciano Hang, que somava milhões de seguidores, estão há anos bloqueados mesmo sem condenação judicial.

O recurso para driblar a censura é uma realidade bastante usual em países que vivem sob regimes autoritários, onde é comum o controle dos provedores de internet, o monitoramento da navegação dos usuários, a restrição a sites com conteúdo crítico ao governo e, em casos extremos, o corte total do acesso, como é o caso da Coreia do Norte.

Já no caso da China, cujo poder é exercido há décadas pelo Partido Comunista Chinês, apesar de a restrição à internet não ser total, a censura tecnológica imposta pelo governo é tão conhecida que é apelidada informalmente de “Grande Firewall da China”. Lá, o acesso a vários sites e aplicativos – como Google, Facebook, Instagram e YouTube – é proibido. E não são apenas cidadãos chineses que costumam recorrer à VPN para ter acesso à internet: repórteres brasileiros que se deslocaram ao país para cobrir a recente viagem de Lula à China, em abril deste ano, precisaram usar o serviço para conseguirem desempenhar seu trabalho.

Como a Gazeta do Povo mostrou, um eventual bloqueio do Telegram tornaria o Brasil a única democracia do mundo a proibir o uso do aplicativo, colocando o país num grupo que, hoje, conta com cinco nações: Coreia do Norte, China, Cuba, Irã e Bahrein.

Publicado na Gazeta do Povo.


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