Artistas e catadores de Campinas transformam fotos achadas no lixo em obras de arte

Iniciado em 2014, Arquivo Coleções de Histórias Ordinárias (ACHO) reúne cerca de 40 mil objetos, entre retratos, cartas de amor e até itens religiosos.

É sob olhares emoldurados de rostos anônimos que a artista Estefania Gavina coordena, nos fundos de um ateliê em Campinas (SP), um projeto que tem como objetivo dar novos significados a memórias antigas. Em parceria com catadores da metrópole, o Arquivo Coleções de Histórias Ordinárias (ACHO) transforma fotografias descartadas e esquecidas em obras de arte.

De retratos a cartas de amor e até itens religiosos, o acervo montado por Gavina em parceria com a pesquisadora Fabiana Bruno reúne cerca de 40 mil fotos e objetos “órfãos” que atraem artistas dentro e fora do Brasil. Há, contudo, uma regra intrínseca e unânime: o respeito às infinitas histórias contadas por cada item.

“São fotografias que não estão em museus, são as fotografias não oficiais da História. Também tem uma questão política importante, porque você faz um arquivo do que as pessoas jogam fora. Parece que a vida é linda, perfeita, mas tem muitas outras histórias e coisas que a gente não sabe”, afirma Gavina.

Garimpando memórias

A coleção começou em 2014, quando um catador — ou “garimpeiro de imagens”, como são carinhosamente chamados no projeto — alertou a artista sobre a quantidade de fotografias que encontrava durante o trabalho. Gavina, então, se ofereceu para comprar o material por cerca de R$ 15 o quilo; à época, o valor praticado pelo mercado era de R$ 0,69.

Desde então, novos garimpeiros surgiram e se interessaram pelo projeto, trazendo fotos encontradas em todas as regiões da cidade. As histórias esquecidas se multiplicaram, em cores e preto e branco, com registros de nascimentos, casamentos, batizados e formaturas. Há quem descarte memórias de uma vida inteira.

“O conceito da fotografia órfã é que quando você joga fora, ela se desvincula. Quem a acolhe, vai acolher com o seu próprio olhar. O processo é totalmente diferente, você se encantar com histórias alheias para contar a sua história”, explica a coordenadora do projeto.

Criar e recriar

Atualmente, o projeto tem uma parceria com um centro de reciclagem no bairro Taquaral; com o garimpeiro de imagens Renato, que trabalha na Vila Brandina; e Maria, que entrega sacolas com fotos, negativos e cartas diretamente no ateliê. Além disso, Estefania estuda uma parceria com uma cooperativa no Jardim São Fernando composta majoritariamente por mulheres.

Gavina afirma que uma dessas mulheres, inclusive, chegou a participar de uma oficina realizada no ateliê. A partir da imersão na arte, surgiram outras ideias de atividades, como a realização de um bazar com objetos descartados, cuja renda foi destinada integralmente às catadoras.

“Elas separaram uma câmera fotográfica, separaram o material, e na feira eu vendi algumas coisas. Um telefone antigo, um vaso. E esse é um dinheiro vai direto para elas. Elas estão no corre-corre do dia a dia, trabalharam por hora, e é muito trabalho. Precisamos ter apoio de alguém, privado ou público, para que elas possam tirar uma tarde por semana para fazer arte, por exemplo”, relata.

Rostos sem dono?

Nas prateleiras, caixas e gavetas do ACHO há histórias esquecidas proposital e acidentalmente. Rostos, relacionamentos e memórias que foram deixados para trás, por acaso do destino ou intervenção humana. Mas quem é o dono de cada um destes registros abandonados?

O advogado constitucionalista, professor e especialista em liberdade de expressão e direito digital André Marsiglia explica que, ainda que estejam dispersas por cooperativas em toda a cidade, as fotografias descartadas não fogem aos direitos autoral e de imagem, imunes à ação do tempo.

“O direito autoral (do fotógrafo) e o direito de imagem (dos retratados), previstos na lei 9610/98, se relativizam quando o uso é artístico. São direitos individuais que cedem ao direito coletivo de divulgação informacional ou cultural”, afirma Marsiglia.

No entanto, caso a obra seja explorada comercialmente, o advogado ressalta que os tribunais têm entendido que esses direitos poderiam ser reclamados. “O fato de serem as fotografias encontradas no lixo, jogadas fora, não diminui em nada o espectro de direitos de imagem e autoral envolvidos na obra”, finaliza.

André Marsiglia é advogado constitucionalista e professor. Pesquisa casos de censura no Brasil e no mundo.

@marsiglia_andre

andremarsiglia.com.br

Publicado no site g1

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